sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Texto: Corrupção cultural ou organizada?

Renato Janine Ribeiro
Precisamos evitar para que a necessária indignação com as microcorrupções “culturais” nos leva a ignorar a grande corrupção.
Ficamos muito atentos, nos últimos anos, tipo de corrupção que é muito freqüente em nossa sociedade o pequeno ato, que muitos praticam, de pedir um favor, corromper um guarda ou, mesmo, violar a lei e o bem comum para obter uma vantagem pessoal. Foi e é importante prestar atenção a essa responsabilidade que temos, quase todos, pela corrupção política – por sinal, praticada por gente eleita por nós.                                                                                                         
Esclareço que, por corrupção, não entendo sua definição legal, mais ética. Corrupção é o que existe de mais antirrepublicano, isto é, mais contrário ao bem comum e à coisa pública. Por isso, pertence à mesma família que é trafegar pelo acostamento, furar fila, passar na frente dos outros. Às vezes é proibida por lei, outras, não.
Mas, aqui, o que conta é seu lado ético, não legal. Deputados brasileiros e britânicos fizeram despesas legais, mas não éticas. É desse universo que trato. O problema é que a corrupção “cultural”, pequena, disseminada – que mencionei acima – não é a única que existe. Aliás, sua existência nos poderes públicos tem sido devassada por inúmeras iniciativas da sociedade, do Ministério Público, da controladoria Geral da União (órgão Executivo) e do Tribunal de Contas da União (que serve ao Legislativo).
Chamei-a de “corrupção cultural”, pois expressa uma cultura forte em nosso país, que é a busca do privilégio pessoal somada a uma relação com o outro permeado pelo favor. É, sim, antirrepublicana. Dissolve ou impede a criação de laços importantes. Mas não faz sistema, não faz estrutura.
Porque há outra corrupção que essa, sim, organiza-se sob a forma de complô para pilhar os cofres públicos – e mal deixa rastros. A corrupção “cultural” é visível para qualquer um. Suas pegadas são evidentes. Bastou colocar as contas do governo na internet para saltarem aos olhos vários gastos indevidos, os quais a mídia apontou o passado.
Mas nem a tapioca de R$ 8 de um ministro nem o apartamento de um reitor – gastos não republicanos – montam complô. Não fazem parte de um sistema que vise a desviar vultosas somas dos cofres públicos. Quem devia essas grandes somas dos cofres públicos. Quem devia essas grandes somas não aparece, a não ser depois de investigações demoradas, que requerem talentos bem aprimorados – da polícia, de auditores de crimes financeiros ou mesmo de jornalistas especialistas muito especializados.
O problema é que, ao darmos tanta atenção ao que é fácil de enxergar (a corrupção “cultural”), acabamos esquecendo a enorme dimensão da corrupção estrutural, estruturada ou, como eu chamaria organizada.
Ora, podemos ter certeza de uma coisa: um grande corrupto não usa cartão corporativo nem gasta dinheiro da Câmara com faxineira. Para que vai se expor com migalhas? Ele ataca somas enormes. E só pode ser pego com dificuldade.
Se lembrarmos que Al Capone acabou na cadeia por ter fraudado o imposto de renda, crime bem menor do que as chacinas que promoveu, é de imaginar que o megacorrupto tome cuidado com suas contas, com os detalhes que possa levá-lo a cadeia – e trate de esconder bem os caminhos que leva a seus negócios.
Penso que devemos combater os dois tipos de corrupção, a corrupção enquanto cultura nos desmoraliza como povo. Ela nos torna “blasé”. Faz nos perder o empenho em cultivar valores éticos. Porque a república é o regime por excelência da ética na política: aquele que educa as pessoas para que prefira o bem geral a vantagem individual. Daí a importância dos exemplos, altamente pedagógicos.
Valorizar o laço social exige o fim da corrupção cultural, e isso só se consegue pela educação. Temos de fazer que as novas gerações sintam pela corrupção a mesma ojeriza que uma formação ética nos faz sentir pelo crime em geral.
Mas falar só na corrupção cultural acaba nos indignando com o pequeno criminoso e poupando o macrocorrupto. Mesmo uma sociedade como a norte- americana, em que corromper o fiscal da prefeitura é bem mais raro, teve a pouco um governo cujo vice-presidente favoreceu, antiéticamente, uma empresa de suas relações na ocupação do Iraque.
A corrupção secreta e organizada não é privilégio de país pobre, “atrasado”. Porém, se pensarmos que corrupção mata – porque desvia dinheiro de hospitais, de escolas, da segurança -, então a mais homicida é a corrupção estruturada. Precisamos evitar que a necessária indignação com as microcorrupções “culturais” nos leve a ignorar a grande corrupção. É mais difícil de descobrir. Mas é ela que mata mais gente.

Folha de S. Paulo, 28/06/2009.
Renato Janine Ribeiro, 59, é professor titular de
Ética e filosofia política do Departamento de Filosofia
da USP. É autor, entre outras obras, de República
(Publifolha, Coleção Folha Explica)

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